domingo, 12 de janeiro de 2014

SESSÃO 17 (dupla): 3 DE FEVEREIRO DE 2014


A PANTERA (1942)

Jacques Tourneur conhecera VaI Lewton durante a rodagem de “A Tale of Two Citties”, em 1935, e entre ambos estabelecera-se uma sólida amizade. Quando VaI Lewton foi convidado para ser produtor da RKO não esqueceu Jacques Tourneur para o seu primeiro projecto, hoje em dia um filme mítico, um “cult movie”, que quase todos consideram uma obra-prima do cinema fantástico, e de que Paul Schrader retirou uma “remake” “actualizada”, e bastante interessante, ainda que definitivamente “menor” em relação ao original.
Falamos de “Cat People”. Mas a génese desta obra admirável tem uma história quase inacreditável, que Tourneur explicou por diversas vezes, e que demonstra como certas obras-primas da arte e da literatura mundiais têm o seu quê de ocasional, de fortuito, na conjugação dos elementos que as tornam possíveis. Na verdade, à partida, ninguém diria que “Cat People” se poderia tornar num título referência da história do cinema:
“VaI Lewton telefonou-me: “Jacques, estou a pôr em andamento um filme para a RKO, não sei muito bem o que virá a ser, mas queria ter-te como realizador”. Fui a casa dele e aí explicou-me. “O patrão da RKO esteve aqui ontem e contou-me que durante uma “party” alguém lhe disse: porque é que não faz um filme que se chamasse “Cat People”? Durante toda a noite pensou nisso e achou que era um excelente título. Por isso me disse: “Pois bem, boys, escrevam-me um argumento que se possa chamar “Cat People”. Lewton contratou um amigo seu, o escritor De With Bodeen, e nós os três fabricámos essa história. É uma história verdadeiramente original, não a roubámos de nenhuma parte”.
E numa outra entrevista, vai mais longe: “Inventámos aquela lenda da Europa Central. Creio que foi uma ideia de Lewton. Ele adorava aquele tipo de coisas. Penso que fui eu que sugeri que se devia adivinhar mais a pantera do que vê-Ia. Eu tinha um tal medo que os tipos do estúdio juntassem uma sobreimpressão que decidi, na cena da piscina, combinar uma panorâmica e um longo “travelling” e criei eu próprio a sombra da pantera, durante o movimento do aparelho, fazendo mexer o meu punho em frente da câmara. Acontecesse o que acontecesse, não podiam dar cabo da cena em seguida. Quando Lewton mostrou o filme aos dirigentes da RKO, estes ficaram furiosos e decidiram distribuí-lo a baixo preço. O filme, para sua grande surpresa, teve uma saída prodigiosa. Batemos mesmo o “record” de exclusividade de “Citizen Kane” e “Cat People” salvou a RKO. Tive a surpresa de descobrir um dia, na minha caixa de correio, um cheque com uma cifra importante, assinado pelo patrão da companhia, agradecendo-me por ter dirigido o filme. São coisas que já não acontecem nos nossos dias”.
Na verdade, um tal filme deverá ter causado alguma estranheza aquando da sua estreia. Os filmes fantásticos, sobretudo os de terror, viviam nessa época essencialmente dos grandes monstros míticos, como Frankenstein, Drácula ou a Múmia, quase todos eles produzidos pela Universal na década de 30, e esse fantástico de sugestão, mais pressentido que visto, mais de clima e ambiente do que de situação, terá provocado obviamente um certo retraimento inicial. Nenhum cinema o quis estrear, até que o “Hawaii Cinema”, uma sala recentemente inaugurada que havia estreado “Citizen Kane”, de Orson Welles, produzido igualmente pela RKO, se arriscou, dado que não tinha nenhum outro filme para ocupar a semana que se seguia. Mas, nessa semana de contrato, o filme bateu todos os “records”, e na segunda semana o sucesso aumentou ainda. Os exibi dores criaram então uma sessão extra, às 10 horas da manhã, para as semanas seguintes. “Citizen Kane” fizera doze semanas, “Cat People” atingiu as treze e com este triunfo salvara a produtora de uma possível ruína, já que esse ano de 1941 fora particularmente mau para a casa, um pouco por causa de “Citizen Kane” e dos problemas que a obra de estreia de Orson Welles provocara.


“Cat People” é um filme exemplar das características e dos métodos de Jacques Tourneur. Atentemos um pouco nele. A obra abre com uma citação que introduz o tema: “Tal como a neblina paira sobre o vale, assim também o pecado ancestral adere às regiões mais profundas da consciência” (Louis Judd, in “The Anatomy of Atavism”).
Junto à jaula de uma pantera, num jardim zoológico, uma mulher desenha alguns esboços que a não satisfazem, deitando as folhas fora. Uma delas é apanhada por Oliver Reed, que se serve disso para meter conversa com a desenhadora. Quando deixam o jardim, outra folha rasgada é levada pelo vento, e mostra uma pantera atravessada por uma espada.
No caminho para casa, Oliver Reed apresenta-se a Irene Dubrova, e procura um processo para a convidar para um chá no dia seguinte. Ao chegar, porém, Irene afasta os rodeios e convida-o directamente para esse chá em sua casa. Ao entrar na porta da rua, Reed detém-se um instante olhando as escadas antigas e afirma que “nunca o deixa de maravilhar o que está por detrás de uma fachada”. O que estará por detrás do rosto de Irene Dubrova e do seu mistério é a razão primordial do seu fascínio.
Ao entrar na sala de Irene, um perfume “quente e humano” surpreende-o. Uma elipse mostra-nos, momentos depois, com a noite a cair sobre a cidade, Irene cantando junto à janela, após o que se ouvem, como se de uma resposta se tratasse, os leões no zoo próximo. Ela acha-os “naturais e repousantes”. Apenas a pantera “a intimida, com o seu grito de mulher”. Dá-se então conta da escuridão que envolve o quarto, mas explica que a encontra “amigável”. Uma estatueta equestre de um cavaleiro, com uma espada trespassando um felino, intriga Oliver Reed. Irene explica-lhe que se trata da imagem de “D. João da Sérvia, um rei que expulsou os mamelucos do seu país e libertou o povo de influências satânicas”. O gato que a espada trespassa é “o símbolo dos vícios”. Mas, alguns membros dessas seitas pecaminosas, seguidoras de Satanás, refugiam-se na sua aldeia natal. Por isso ela se sente ameaçada.
No dia seguinte, antes de se encontrarem para jantar, Reed compra um gatinho que pretende oferecer a Irene, mas o bicho reage mal na presença da rapariga, e esta confessa-lhe que “os gatos não gostam dela”. Propõe trocar o animal por outro (para o que ambos se dirigem à loja, onde a presença de Irene desperta um verdadeiro vendaval junto dos animais enjaulados e assustados. A dona da loja afirma que “se pode enganar toda a gente, menos os gatos. Eles têm reacções psíquicas que identificam o mal”).
Depois de uma nova elipse, vamos encontrar Irene e Reed junto à lareira. Reed adormecera, Irene vigia-lhe o sono. Confessam o seu amor, ele estranha que ainda não se tenham beijado. Mas Irene teme esse momento.
Num restaurante sérvio, onde o casal comemora o casamento na companhia de alguns amigos, uma mulher fatal, que todos identificam com uma gata, dirige-se em servo a Irene, e chama-lhe “irmã”, o que visivelmente a transtorna.
Em casa, junto do marido, recusa toda a intimidade e pede a Reed ternura e compreensão. Ela teme o momento de ambos se tocarem. Voluntariamente enjaulada no seu quarto, Irene esboça um gesto para abrir a porta que a separa do marido, mas o grito longínquo da pantera afasta-a dos seus propósitos. Um mês depois, de novo de visita ao zoo, encontra o empregado de limpeza, junto da jaula da pantera. Ele não estranha que ela não tenha aparecido durante tanto tempo: “As pessoas felizes não vão visitar aquele animal, que a Bíblia, nas “Revelações”, descreve como uma besta que se assemelha ao leopardo, sem o ser”.
O canário que tem em casa morre com o susto da proximidade de Irene e esta vai levar o cadáver da ave à pantera do zoo, confessando depois a Reed que teve o impulso de abrir a jaula e libertar a fera. O marido percebe então que algo de grave se passa no seu espírito. Nada de errado há com ela, a não ser essa crença que é necessário anular, para o que propõe uma consulta a um psiquiatra.
Num consultório completamente na penumbra, apenas com parte do rosto de Irene iluminado, esta, hipnotizada, vai revelando ao Dr. Judd os temores que a perseguem e atormentam. Recapitulando o que de mais importante ouvira, o médico refere-se a “essas mulheres sem controlo nas paixões que matam o amante”. Irene julga-se filha de uma mulher-gata, particularmente ciumenta, e grande parte dos seus presságios confirmam-se quando encontra, em sua casa, junto do marido, Alice, a quem Reed havia revelado as inquietações da mulher, o que esta não desculpa. É a revelação da sua intimidade que a revolta, mas sobretudo os ciúmes que a invadem.
Afasta-se das consultas do Dr. Judd, que ela acha que não a podem ajudar, mas este vai encontrá-la junto à jaula da pantera, onde resistiu a libertar a fera, e ambos falam da “subtil distinção entre espírito e alma. O seu espírito nada tem, mas Irene acredita que a sua alma está contaminada”.
Num dos dias seguintes, Oliver Reed tem de trabalhar à noite e sai de casa. Irene, desconfiada, telefona para o escritório, onde Alice lhe responde, e vem surpreender ambos, ocasionalmente, num restaurante. Persegue então Alice pelas ruas mal iluminadas, nas quais se pressente uma transformação. Alguns animais são mortos pelo caminho, e as pegadas de uma pantera que se afasta vão dando lentamente lugar às marcas de uns sapatos de mulher, de saltos altos. Nessa noite, os pesadelos invadem o sono de Irene que vê o mal a espalhar-se pelo mundo, sob a aparência de uma pantera, associando a figura do psicanalista a João da Sérvia que, de espada em punho, procura afastar o vício.
Chega-se à cena mais célebre de “Cat People”. Alice vai tomar banho a uma piscina pública. Irene persegue-a. Um pequeno gato preto circula por ali, de forma a introduzir uma zona de ambiguidade em tudo o que depois irá acontecer. Quando Alice apaga a luz da piscina, depois de tomar banho, e se prepara para a abandonar, ouve o rugir de uma pantera e vê, reflectida, a sombra de um felino. Refugia-se no centro da piscina, grita por socorro, mas, quando as empregadas chegam, vêem Irene que explica que a amiga se assustara quando ela apareceu na escuridão. Tudo parece estar resolvido, excepto o roupão de banho de Alice, que se encontra completamente esfrangalhado, transformado o tecido em tiras, pelas unhas cortantes, ou a faca, ou as garras, de algo ou alguém que, entretanto, por ali passara. Quem? O quê?
Irene regressa então ao psicanalista que lhe diz que “essas alucinações são perigosas, que a fuga para a fantasia está à beira de a levar à loucura: Só você pode ajudar-se a si própria”. Mas, quando Irene se afasta, olha-a com o desejo de quem sabe que aquela mulher encerra algo de fascinante que ele mesmo irá tentar descobrir. Depois de algumas peripécias, depois de uma nova perseguição de Irene a Alice no escritório de Reed, que este esconjura com a sombra de um pedaço de madeira que se projecta como uma cruz, o Dr. Judd irá encontrar Irene e beijá-Ia. A transformação em pantera pressente-se de novo através da iluminação que se extingue, e assiste-se a uma luta entre ambos que acabará com a morte do psicanalista e a fuga de Irene com o peito trespassado por parte da espada que nele se partira. Dirige-se até ao jardim zoológico, onde liberta finalmente a pantera enjaulada, que, ao saltar para a rua, é atropelada por um carro, enquanto lá dentro sucumbe também Irene, prostrada pela ferida que transportava consigo, Reed e Alice apenas confirmam a sua morte e os seus temores: “Ela nunca nos mentiu”. Afastam-se, pois, por entre o nevoeiro, enquanto nova citação encerra o filme: “Mas o pecado mais negro traiu a noite sem fim. Ambos, partes do meu mundo, pecado e noite, têm de morrer.”


Todo o cinema de Tourneur se encontra encerrado nesta obra. A dualidade de personagens que coexistem em Irene (a tranquilidade doce da sua aparência, a violência brutal do seu íntimo), a oposição entre a luz e as trevas (identificando-se aqui noite com pecado: é na escuridão que Irene se transforma, real ou metaforicamente, nessa pantera de instintos indomináveis que aterroriza a outra Irene), o estilo narrativo onde predomina a elipse, onde se subentende sempre mais do que se mostra claramente, o tipo de iluminação que cria zonas de sombras ameaçadoras, e projecta sobre os personagens, redes e teias que os aprisionam (em quase todo o filme as grades das janelas projectam-se sobre os personagens como prisões invioláveis), o próprio estilo de representação, quase segredado, ciciado, onde se confessam temores íntimos e ameaças inlocalizáveis, a neutralidade da interpretação, que se aproximam daquela estética da inexpressividade de que falou Jacques Lourcelles, quando se referia a este “Keaton do trágico”. Neste aspecto, o trabalho de Simone Simon é notável de sobriedade e de contenção, transformando a sua figura numa inesgotável fonte de mistério e de secretas ambiguidades. “Se a introdução do inexplicável no seio da normalidade quotidiana é a essência mesma do fantástico, realizaram-se muito poucos filmes tão radical e permanentemente fantásticos como “Cat People” e “I Walked With a Zombie”, afirma Miguel Marias no seu estudo dedicado ao cinema fantástico de Tourneur. E realmente raras vezes essa perturbante sensação de normalidade ameaçada pelo inexplicável nos foi transmitida em cinema com uma tal economia de meios, com um tal pudor, com uma tamanha elegância de estilo. Tudo é possível e impossível em “Cat People”. Uma interpretação psicanalista, através da análise de uma personagem frígida que tem medo da sua libido liberta, é a solução que se apresenta com maior plausibilidade. Mas, nesse caso, como explicar as transformações das pegadas em passos de mulher, e a própria morte do Dr. Judd? Mas, dentro do próprio filme, podem-se encontrar justificações para muitos acontecimentos julgados estranhos, que o engenho dos argumentistas e do realizador ajudam a tomar solúveis num plano racional pela dispersão de pequenos dados (o gato na cena da piscina, por exemplo). Voltando a citar Miguel Marias: “Cat People” actua de forma insidiosa, posto que, tal como “Os Pássaros”, de Hitchcock, aceita, e até sugere, hipóteses “lógicas e racionais”, para logo as desmentir ou pelo menos, pô-las em dúvida, mantendo até final e mesmo “depois” um máximo de ambiguidade”. Este estudo particularmente interessante sobre a obra de Tourneur, e nomeadamente sobre “Cat People”, acentua um aspecto essencial desta película e de toda a obra de Tourneur: “Tourneur parece empenhado em parte por afã experimental e como consequência de uma reflexão sobre a natureza e a função do cinema fantástico, mas também por causa das limitações económicas da série B, em minar a nossa complacente sensação inicial de segurança: as nossas tentativas de recuperá-la resultam vãs, frente à sua firme negação de qualquer explicação lógica, natural, psicológica, onírica ou até simbólica”. E mais adiante: “Resulta, pois, que no final do filme o inexplicável permanece inexplicável. O mistério não foi submetido, desdobrado, dissipado, resolvido ou esclarecido; pelo contrário, as forças do insólito triunfam e a película – o seu enigma, as suas inquietantes implicações - não acaba com a palavra “fim” (...). “E não é um final “aberto”, mas irremediavelmente fechado, irrefutavelmente enclausurado à nossa forma de raciocinar. A sua capacidade é total, o seu mistério é o mesmo - incitante, tantalizador, instigador da curiosidade - que o de uma porta ou uma janela fechada.
Diante de “Cat People” não nos fica outra alternativa que não seja renunciar a desvanecer o seu mistério - e conviver com essa sensação de impotência - ou alterar radicalmente a nossa concepção do real e do imaginário, do possível e do impossível, do natural e do sobrenatural.” Rodado em 21 dias, com um orçamento de 130 000 dólares, “Cat People” renderia mais de um milhão, só durante a estreia.

A PANTERA
Título original: Cat People
Realização: Jacques Tourneur (EUA, 1942); Argumento: De Witt Bodeen (com colaboração de Val Lewton); Música: Roy Webb; Director musical: C. Bakaleinikoff; Orquestradores: Leonid Raab, John Leipold; Fotografia (p/b): Nicholas Musuraca; Montagem: Mark Robson; Direcção artística: Albert S. D'Agostino, Walter E. Keller; Decoração: A. Roland Fields, Darrell Silvera; Guarda-Roupa: Renié; Assistentes de realização: Doran Cox, Robert Aldrich; Som: John L. Cass; Efeitos Especiais: Vernon L. Walker; Efeitos Visuais: Linwood G. Dunn; Supervisor: Lou L. Ostrow; Treinador de animais: Mel Koontz; Produção: Val Lewton. RKO.Intérpretes: Simone Simon (Irena Dubrovna Reed), Kent Smith (Oliver 'Ollie' Reed), Tom Conway (Dr. Louis Judd), Jane Randolph (Alice Moore), Jack Holt (o comodoro), Henrietta Burnside (Sue Ellen), Alec Craig (tratador de animais), Eddie Dew (polícia de rua), Elizabeth Dunn (Miss Plunkett), Dynamite (leopardo), Dot Farley (Mrs. Agnew, a porteira), Mary Halsey (Blondie), Theresa Harris (Minnie), Charles Jordan (conductor de autocarro), Donald Kerr (taxista), Connie Leon (vizinho), Murdock MacQuarrie (porteiro), Alan Napier (Doc Carver), Betty Roadman (Mrs. Hansen), Elizabeth Russell (a mulher pantera), Steve Soldi (organista), etc. Duração: 73 minutos; Estreia mundial: Los Angeles, 12 de Novembro de 1942; Estreia em Portugal: Lisboa, Éden, 3 de Setembro de 1943; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos.

JACQUES TOURNEUR 
(1904-1977)
Jacques Tourneur nasceu em Paris a 12 de Novembro de 1904 e vem a falecer em Bergerac, Dordogne, Aquitânia, França, a 19 de Dezembro de 1977. Filho de uma actriz célebre, Van Doren (cujo nome verdadeiro era Fernande Petit) e de um excelente cineasta, Maurice Tourneur (Maurice Thomas, na realidade), estuda primeiramente no liceu Montaigne, depois no Lakanai, até que, em 1914, parte com a mãe para Hollywood, juntando-se a seu pai que já lá trabalhava desde Maio desse ano. Mas fica em Nova Iorque a estudar, frequentando a New York Public School. Só em fins de 1918 voltaria à Califórnia para junto dos pais, matriculando-se então na Private School of Santa Barbara, depois na Hollywoold High School, onde esteve até Junho de 1924. Tornara-se cidadão americano em 1919, e em 1922, aproveitando umas férias, fizera figuração em “Scaramouche”, de Rex Ingram.
Quando acabou os estudos, iniciou logo uma carreira ligada ao cinema, primeiramente como “script-clerk” nos últimos seis filmes rodados pelo pai nos EUA, depois como “stock-actor” nos estúdios da Metro Goldwing Mayer. Em fins de 1929 regressa à Europa, primeiro à Alemanha, depois a França, acompanhando o pai, sendo seu assistente, e mais tarde começando a colaborar também na montagem. Passa à realização e dirige algumas comédias. Em 1935, já casado, decide arriscar na América, onde recomeça como realizador de segunda equipa e depois passou a dirigir curtas-metragens para o departamento especial da M. G M. Depois de três anos de aprendizagem na escola do documentarismo, foi um pouco por acaso que Jacques Tourneur rodou a sua primeira longa-metragem, “They AlI Come Out”, em 1939, a que se segue aquele que poderá ser considerado o seu primeiro filme de fundo, idealizado inicialmente como tal. Trata-se de “Nick Carter, Master Detective”, com Walter Pidgeon. Em 1942 será a vez de ingressar na RKO, para onde vai ser conduzido pela mão amiga de Val Lewton, iniciando uma série de obras de cariz fantástico que o lançarão definitivamente como realizador e autor de um estilo muito pessoal. “Cat People” (A Pantera), “I Walked with a Zombie” (Zombie), “The Leopard Man” (O Homem Leopardo), “Days of Glory”, “Experiment Perilous” (Noite na Alma), “Out of the Past” (O Arrependido), “Berlin Express” (O Expresso de Berlin), “Stars in My Crown”, “The Flame and the Arrow” (O Facho e a Flecha), “Night of the Demon” “ (Noite do Demónio) ou “Nightfall” (Ao Cair da Noite), entre outros, demonstram bem o seu talento.

Filmografia
Como realizador
1931: Tout ça ne Vaut pas l'Amour ou Un Vieux Garçon (França)
1933: Toto (Totó) (França)
1933: Pour être Aimé (Para ser Amado) (França)
1934: Les Filles de la Concierge (França)
1936: The Jonker Diamond (curta-metragem. Entre a ficção e o documentário)
1936: Harnessed Rhythm ou A Sports Parade Subject: Harnessed Rhythm (curta-metragem. Documentário)
1936: Master Will Shakespeare (curta-metragem)
1936: Killer-Dog (curta-metragem)
1937: The Rainbow Pass (curta-metragem)
1937: The Man in the Barn (curta-metragem)
1937: The Grand Bounce (curta-metragem)
1937: The Boss Didn't Say Good Morning (curta-metragem)
1937: Romance of Radium (curta-metragem)
1937: The King Without a Crown (curta-metragem)
1937: What Do You Think? (curta-metragem)
1937: Strange Glory (curta-metragem)
1938: The Ship That Died (curta-metragem)
1938: What Do You Think? (Number Three)  (curta-metragem)
1938: The Face Behind the Mask (curta-metragem)
1938: What Do You Think?: Tupapaoo ou What Do You Think No. 4: Tupapaoo (curta-metragem)
1938: Think It Over (curta-metragem)
1939: Yankee Doodle Goes to Town (curta-metragem)
1939: They All Come Out (curta-metragem)
1939: Nick Carter, Master Detective (NICK CARTER, REI DOS DETECTIVES)
1940: Phantom Raiders ou Nick Carter in Panama (NICK CARTER NO PANAMÁ)
1941: Doctors Don't Tell
1942: The Incredible Stranger
1942: The Magic Alphabet (curta-metragem)
1942: Cat People (A Pantera)
1943: I Walked with a Zombie (Zombie)
1943: The Leopard Man (O Homem Leopardo)
1944: Days of Glory
1944: Experiment Perilous (Noite na Alma)
1944: Reward Unlimited (documentário de Guerra)
1946: Canyon Passage (Amor Selvagem)
1947: Out of the Past ou Build My Gallows High (O Arrependido)
1948: Berlin Express (O Expresso de Berlin)
1949: Easy Living ou Interference (Morrendo para Viver)
1950: Stars in My Crown
1950: The Flame and the Arrow ou The Hawk and the Arrow (O Facho e a Flecha)
1951: Circle of Danger (Círculo De Ferro)
1951: Anne of the Indies (A Rainha Dos Piratas)
1952: Way of Gaúcho (O Gaúcho)
1953: Appointment in Honduras ou Jungle Fury (Encontro Nas Honduras)
1955: Stranger on Horseback
1955: Wichita (Wichita)
1955-1958: Jane Wyman Presents The Fireside Theatre ou Jane Wyman Presents ou Jane Wyman Theater (Série de TV) (EUA, 1955-1958) Jacques Tourneur (ep. "Kristi" e “The Mirror”)
1955-1962: General Electric Theater ou G.E. Theatre (EUA, 1953-1962) (série de TV) Into the Night - Ep. 3.30; Aftermath ou Mr. Preach ou The Code of Jonathan West – Ep. 8.28; Star Witness: The Lili Parrish Story – Ep. 10.8. Algumas fontes referem ainda como realizado por Tourneur o episódio The Martyr Ep. 3.17.
1956: Great Day in the Morning (Terra Sangrenta)
1957: Night of the Demon ou Curse of the Demon ou Haunted (Noite do Demónio)
1957: Nightfall (Ao Cair da Noite)
1951-1959: Schlitz Playhouse of Stars ou Herald Playhouse ou Schlitz Playhouse ou The Playhouse (Série de TV – 1951-1957) Jacques Tourneur (ep.“Outlaw’s Boots”)
1957-1958: The Walter Winchell File - (série de TV- 1957-1958)
The Steep Hill – Ep. 1.13; The Stop-over – Ep. 1.25; House on Biscayne Bay
1958: Cool and Lam (1958) (TV)
1958-1959: Northwest Passage (série de TV, 1958-1959) Jacques Tourneur (ep. "The Assassin", "The Bound Women", “The Burning Village”, "Break Out", "The Gunsmith", "The Traitor", "The Vulture", “The Hostage” e “The Burnning Village” (?)
1959: Mission of Danger (Bandeirantes da Fronteira)
1959: Timbuktu (Timbuktu)
1959: Frontier Rangers (Bandeirantes em Perigo)
1q959: La Battaglia di Maratona ou La Bataille de Marathon ou Giant of Marathon (O Gigante de Maratona)
1959-1973: Bonanza ou Ponderosa (Bonanza) (Série de TV- 1959-1973) Jacques Tourneur (ep. "Denver McKee")
1959-1962: Adventures in Paradise (Série de TV - 1959-1962) Jacques Tourneur (ep. "A Bride for the Captain")
1959-1964: The Twilight Zone (Quinta Dimensão) (série de TV - 1959-1964) Jacques Tourneur (ep. "Night Call")
1959-1960: The Alaskans (Série de TV - 1959-1960)
1960: The Barbara Stanwyck Show (série de TV) Jacques Tourneur (ep. “The MinkCoat”)
1961: Fury River
1961-1962: Follow the Sun (série de TV -1961-1962) Sergeant Kolchak Fades Away – Ep. 1.20 (28 Janeiro 1962)
1964: The Comedy of Terrors ou The Graveside Story (O Gato Miou Três Vezes)
1965: The City Under the Sea ou City in the Sea ou War-Gods of the Deep (A Cidade Submarina)
1966: "T.H.E. Cat" (série de TV, 1966-1967) Jacques Tourneur (ep. “The Ring of Anasis”)

SIMONE SIMON 
(1910-2005)
Simone Thérèse Fernande Simone nasceu a 23 de Abril de 1910, em Béthune, Pas-de-Calais, segundo umas fontes, em Marselha, Bouches-du-Rhône, França, segundo outras referências, e faleceu em Paris, França, a 22 de Fevereiro de 2005. Passou grande parte da sua juventude em Madagascar, onde o pai administrava uma mina de grafite. Depois andou de um lado para o outro, entre Berlim, Budapeste e Turim, antes de estabelecer em Paris, em 1930. Começou a trabalhar como designer de moda, e estreou-se no teatro musical e depois no cinema, sob a égide de Marc Allégret. O seu primeiro filme importante foi “A Fera Humana” (1938), uma realização de Jean Renoir. Em 1936, Darryl F. Zanuck convida-a a ir para Hollywood, para ingressar na 20th Century Fox. Dificuldades com o seu inglês atrasaram a sua estreia que só se veio a efectivar em 1941, num filme de William Dieterle “O Homem Que Vendeu a Alma”. No ano seguinte assegurava a imortalidade como protagonista de “The Cat People”, um clássico de filme fantástico, assinado por Jacques Tourneur. Manteve-se na RKO noutras produções idênticas, mas sem o sucesso do seu trabalha em “A Pantera”. O FBI teve-a sob vigilância, aquando da sua relação com o famoso espião duplo Dusko Popov, que era considerado espião alemão, mas finalmente estava a soldo dos ingleses. (Popov acabaria por servir de inspiração a Ian Fleming, para a criação do seu famoso James Bond). Simone Simon nunca casou, mas foram-lhe conhecidas muitas aventuras amorosas, inclusive com George Gershwin, que deve ter escrito em sua honra "Love Walked In". De novo em França apareceu nalgumas obras de Max Ophuls. Morreu em Paris, com 94 anos, de causas naturais.

Filmografia:
1931: On opère sans douleur, de Jean Tarride
1931: Durand contre Durand, de Eugen Thiele e Léo Joannon                                                     
1931: Mam'zelle Nitouche, de Marc Allégret
1931: Le chanteur inconnu, de Viktor Tourjansky
1932: Pour vivre heureux, de Claudio de la Torre                                                                      
1932: La petite chocolatière, de Marc Allégret
1932: Un fils d'Amérique (Um Filho da América), de Carmine Gallone
1932: Le roi des palaces (O Rei dos Palaces), de Carmine Gallone
1933: Tire au flanc, de Henry Wulschleger
1933: Prenez garde à la peinture, de Henri Chomette
1933: L'étoile de Valencia (A Estrela de Valência), de Serge de Poligny
1933: Le voleur (O Ladrão), de Maurice Tourneur
1934: Ladies Lake (O Lago do Amor), de Marc Allégret
1935: Les yeux noirs (Olhos Negros), de Viktor Tourjansky
1935: Les beaux jours, de Marc Allégret
1936: Girls' Dormitory (Dormitório de Raparigas), de Irving Cummings
1936: Ladies in Love, de Edward H. Griffith                                                                              
1937: Seventh Heaven (A Hora Suprema), de Henry King
1937: Love and Hisses, de  Sidney Lanfield                                                                                
1938: Josette (A Falsa Josette), de de Allan Dwan
1938: La Bête Humaine (A Fera Humana), de Jean Renoir
1940: Cavalcade d'amour (Cavalgada do Amor), de Raymond Bernard
1941: The Devil and Daniel Webster ou All That Money Can Buy (O Homem Que Vendeu a Alma), de William Dieterle
1942: Cat People (A Pantera), de Jacques Tourneur                                                                  
1943: Tahiti Honey (Noivo Imaginário), de John H. Auer
1944: Mademoiselle Fifi (Mademoiselle Fifi), de Robert Wise                                                      
1944: The Curse of the Cat People (A Maldição da Pantera), de Gunther von Fritsch e Robert Wise
1944: Johnny Doesn't Live Here Any More, de Joe May
1946: Pétrus (Petrus), de Marc Allégret
1947: Temptation Harbour (O Porto da Tentação), de Lance Comfort                                          
1950: Women Without Names (Mulheres Sem Nome), de Géza von Radványi
1950: La Ronde (A Ronda), de Max Ophüls
1951: Olivia (Olivia), de Jacqueline Audry
1952: Le Plaisir (O Prazer) (episódio "Le Modèle"), de Max Ophüls                                               
1954: Siegfried ou A Double Life ou Das zweite Leben, de Victor Vicas
1954: I tre ladri (Os Três Ladrões), de Lionello De Felice
1956: The Extra Day, de William Fairchild
1957: La femme en bleu (A Mulher de Azul), de Michel Deville

SESSÃO 17 (dupla): 3 DE FEVEREIRO DE 2014


LAURA (1944)

Otto Preminger nasceu em Viena de Áustria, filho de um importante advogado que idealizou para ele uma mais que óbvia carreira de magistrado. Mas, desde muito miúdo que o que Otto Preminger queria era trabalhar no teatro e desde os 16 anos começou a pisar as tábuas do palco. No ano seguinte, estava já sob as ordens do prestigiado Max Reinhardt. Aos vinte anos, formado em advocacia, dirige uma companhia de comédia, mantendo a ligação com Reinhardt.
Estreia-se na realização em 1931, com 25 anos, mas interrompe a sua carreira na Áustria, porque começou a não gostar da proximidade de Hitler e das suas ideias. Partiu para a América, onde, em 1936, dirige o seu primeiro filme norte-americano, mas o director da Fox era então Zanuck e, sendo ambos autoritários e muito senhores do seu nariz, cedo surgem conflitos que o levam a partir para Nova Iorque. Aqui, fica-se pelo teatro, encena e interpreta várias obras, e é convidado para professor de encenação na Universidade de Yale. Volta então a Hollywood, para interpretar alguns filmes, entre os quais “Stalag 17”, de Billy Wilder, e arranca para uma segunda fase da sua carreira de cineasta. Em 1944, dirige “Laura”, que para o autor é o seu verdadeiro primeiro filme. Diga-se de passagem que "se iniciou" assim com uma obra-prima, a que se seguiram depois muitas outras obras admiráveis, como “Forever Amber”, “River of No Return”, “Bunny Lake is Missing”.
Mas a sua vasta filmografia permite curiosas análises. Primeiro que tudo, trata-se obviamente de um autor, um homem com uma obra extremamente coerente, mesmo quando num caso ou noutro se pode falar de falhanço. Para conseguir manter essa coerência consigo mesmo, torna-se produtor dos seus próprios filmes, o que na altura não era muito vulgar.
Apaixonado pelos grandes temas, muitas vezes retirados de "best sellers", abordou o racismo em “Carmen Jones”, “Porgy and Bess” ou “Harry Sundwon”; advogado, não esqueceu as salas de tribunais, e em “Conselho de Guerra” ou “Anatomia de um Crime” passeia-se por elas com uma desenvoltura notável; em “Exodus” aborda a questão judaica e a formação do estado de Israel; em “O Cardeal”, percorre os corredores e as manobras de bastidores do Vaticano; a solidão e o conflito de gerações estão presentes em “Bom Dia, Tristeza”; a guerra é a base de “A Primeira Vitória”, e com “Tempestade sobre Washington” entra no Senado norte-americano para o discutir com uma frescura e largueza de pontos de vista que tornariam a obra suspeita aos olhos da direita mais radical.
Senhor de um estilo inconfundível, que alguns acusam de ser frio e distante, mas apenas é rigoroso e discreto, Otto Preminger gostava de passear a sua câmara aos longo de notáveis planos sequência, que, dir-se-ia, iam montando o filme à medida que este se ia rodando, sem grande necessidade de muito corte e recorte na moviola. Quando apareceu o Cinemascope, nos anos 50, foi dos que melhor aproveitou as possibilidades plásticas deste novo formato, em filmes como “Rio sem Regresso”, “Carmen Jones” ou “Bunny Lake is Missing”. Mas foram os seus filmes dos anos 40 que o tornaram um mestre, muito embora a sua obra mais recente não seja de todo em todo negligenciável, como muitos procuram fazer crer. Mesmo em filmes como “Exodus”, “O Cardeal” ou “A Primeira Vitória”, Preminger assina sequências dignas do seu melhor.
Regressando a “Laura”, que parte de um argumento de Jay Dratler, Samuel Hoffenstein e Elizabeth Reinhardt, baseado no romance de 1943 de Vera Caspary, posso assegurar que este é um dos meus filmes predilectos da década de 40 americana, a história de uma obsessão, a de um inspector da polícia que vive fascinado pelo retrato de uma mulher belíssima, que ele julga morta. Mas, em Otto Preminger, as aparências iludem e quase todos os seus filmes nos levam a desconfiar das primeiras impressões. O que parece certo e seguro, não o é quase nunca.


O argumento denota algumas fragilidades e incoerências se analisado à lupa numa perspectiva estritamente racional. Mas esta não é uma obra “racional”, mas sim uma viagem por espíritos transtornados por grandes paixões. Em Manhattan, Nova Iorque, um detective, Mark McPherson (Dana Andrews), inicia a investigação de um crime. Aparentemente o corpo da bela e sedutora publicitária Laura Hunt (Gene Tierney) aparece à entrada da porta do seu apartamento, vítima de dois tiros desfechados à queima-roupa. Laura tinha à sua volta vários pretendentes, e possíveis suspeitos, entre os quais o colunista Waldo Lydecker (Clifton Webb), um dandy petulante e enfatuado que se tinha tornado protector da jovem, mas também um empertigado pelintra playboy que se afirma pintor e se anuncia noivo de Laura, Shelby Carpenter (Vincent Price). Outras personagens surgem ainda, como uma amiga misteriosa que disputa o amor de Shelby, Ann Treadwell (Judith Anderson), e também a traumatizada empregada da publicitária, Bessie Clary (Dorothy Adams).
Mark McPherson percorre os últimos dias de Laura, a sua correspondência e diário íntimo, instala-se em sua casa, onde olha demoradamente um belíssimo retrato da mulher dada como morta, e lentamente deixa-se possuir por essa presença-ausência. Tal como Waldo ou Shelby, Mark sente-se dominado pelo fascínio daquela mulher que inspira sentimentos profundos e ciúmes incontroláveis. Adormecido uma noite frente ao retrato de Laura, acorda com a presença real da retratada, que regressa de uns dias de férias passados numa casa de campo. O mistério avoluma-se, adensa-se, agora com o objecto das paixões bem presente entre detective e suspeitos.
O trabalho de "mise-en-scène" de Otto Preminger procura sobretudo penetrar a realidade, interrogá-la, desafiá-la. A câmara vagueia pelos espaços fechados e carregados e sombras e luzes (é curioso verificar o jogo que se estabelece na criteriosa utilização de ambas ao longo de todo o filme), envolvendo o espectador num soberbo exercício de estilo. É o que poderemos ver neste filme admirável, fabulosamente interpretado por uma Gene Tierney de sonho, muito bem secundada por Dana Andrews, Clifton Webb e Vincent Price.
Aparentemente, “Laura” é um policial, mais precisamente um “film noire”. Mas o talento do cineasta e da sua equipa transformam-no em algo de inclassificável: uma história de amor que continuamente nos foge, um filme de um romantismo envolvente, que um certo cinismo do olhar não deixa nunca resvalar para a facilidade; uma absorvente história de mistério... A brumosa fotografia de Joseph La Shelle e a música de David Raksin servem de forma magistral os propósitos de Preminger.
Curiosamente, este filme foi iniciado por Preminger ao nível do tratamento do argumento, e Darryl F. Zanuck indicou-o somente para produtor, dado que havia anteriormente jurado que Preminger nunca realizaria mais filmes para ele. Mas, depois de alguns dias de rodagem entregues a Rouben Mamoulian, este foi afastado do projecto que, entretanto, veio parar às mãos de Preminger. Tinha sido Marlene Dietrich a actriz inicialmente prevista para protagonista, mas por impossibilidade desta, haveria de ser Gene Tierney a encarnar a personagem que para sempre se lhe colaria à pele e lhe traria a glória.
Em 1999, “Laura” foi seleccionado para ser preservado no “United States National Film Registry”, organizado pela “Library of Congress”, em função da sua importância “cultural, histórica e estética”. Considerado pela escolha do “American Film Institute” como um dos melhores 100 “thrillers” de sempre, encontra-se igualmente no número 1 dos 100 melhores filmes de mistério de sempre.

LAURA
Título original: Laura
Realização: Otto Preminger, Rouben Mamoulian (este não creditado) (EUA, 1944); Argumento: Jay Dratler, Samuel Hoffenstein, Elizabeth Reinhardt, Ring Lardner Jr., segundo romance de Vera Caspary; Produção: Otto Preminger; Música: David Raksin; Fotografia (p/b): Joseph LaShelle, Lucien Ballard; Montagem: Louis R. Loeffle; Direcção artística: Leland Fuller, Lyle R. Wheeler; Decoração: Thomas Little; Guarda-roupa: Bonnie Cashin; Maquilhagem: Guy Pearce; Assistentes de realização: Tom Dudley, Robert Saunders; Departamento de arte: Paul S. Fox; Som: Harry M. Leonard, E. Clayton Ward; Efeitos especiais: Fred Sersen, Edwin Hammeras, Edward Snyder; Companhias de produção: Twentieth Century Fox Film Corporation; Intérpretes: Gene Tierney (Laura Hunt), Dana Andrews (Detective Mark McPherson), Clifton Webb (Waldo Lydecker), Vincent Price (Shelby Carpenter), Judith Anderson (Ann Treadwell), Grant Mitchell, Dorothy Adams, Lane Chandler, John Dexter, Ralph Dunn, Clyde Fillmore, James Flavin, William Forrest, Kathleen Howard, Frank LaRue, Thomas Martin, Jane Nigh, Harold Schlickenmayer, Larry Steers, Harry Strang, Cara Williams, etc. Duração: 88 minutos; Distribuição em Portugal (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos. Estreia em Portugal: 3 de Dezembro de 1945.

OTTO PREMINGER 
(1906 - 1986)
Nasceu em Wiznitz, Bukovina, então império Austro-húngaro, agora Wyschnyzja, na Ucrânia e viria a falecer em Nova Iorque, EUA, a 23 de Abril de 1986, com 80 anos, vítima de cancro, depois de passar algus anos difíceis, devido à doença de Alzheimer. As suas cinzas estão depositadas no Woodlawn Cemetery, no Bronx, Nova Iorque. Um filme seu, “Anatomia de um Crime” (1959), foi nomeado para melhor filme do ano e ele próprio recebeu duas nomeações para melhor realizador por “Laura” (1944) e por “O Cardeal” (1963), que também mereceu idêntica referência nos Globos de Ouro do mesmo ano. No Festival de Berlim, esteve com “Anatomia de um Crime” (1959) e com Carmen Jones (1954), que ganharia o Urso de Bronze. O seu nome está gravado no Passeio da Fama, numa das estrelas, em 6624 Hollywood Boulevard.
Originário de uma família judaica, os pais eram Josefa e Markus Preminger, este último um proeminente advogado, muito próximo do imperador Franz Josef. Otto teve uma infância feliz, mas com a morte do arquiduque Franz Ferdinand, em 1914, e com a proximidade da I Guerra Mundial, mudou-se com a família para Graz, capital da província austríaca da Stiria. Frequentou uma escola católica, passando depois a Viena, onde por vezes Otto Preminger dizia ter nascido. Foi aí que se iniciou no teatro, sob as ordens de Max Reinhardt, um dos grandes encenadores dessa época, e que teve uma influência forte na sua carreira e estilo pessoal. Entretanto, estudou Direito e concluiu o curso na Universidade de Viena. Estreou-se como actor e assistiu Reinhardt em várias produções. Pouco depois, passou a encenar as suas próprias produções, 27 entre 1931 e 1937. Em 1932, casa com a actriz Marion Mill, um ano depois de se ter estreado na realização, com “Die Grosse Liebe” (1931).
Em 1935, parte para Hollywood, a convite de Joseph Schenck, da Twentieth Century-Fox, onde também dominava nessa altura o produtor Darryl F. Zanuck. Em 1936, estreia-se no cinema americano com “Under Your Spell”. Convidado a dirigir “Kidnapped”, segundo romance de Robert Louis Stevenson, começaram as desavenças com Zanuck, que tinha escrito a adaptação. Pouco depois, estava sem emprego e nenhum outro estúdio o desejava. Trocou Hollywood pela Broadway, onde teve sucesso imediato com algumas encenações: “Outward Bound”, “My Dear Children” ou  “Margin for Error”, que o trouxe de novo para a Fox, na ausência de Zanuck, então a cumprir serviço militar. Entretanto, em virtude da sua experiência como actor, da sua figura e sotaque alemão, foi convidado para interpretar diversos papéis de nazi. Mas, em 1944, o êxito bate-lhe à porta com a realização de “Laura”, que se assumiria desde logo como um clássico do “film noire” e uma das grandes referências do cinema americano da década de 40. Mas a rodagem não foi isenta de percalços. Iniciava-se aqui uma carreira invulgar no cinema norte-americano, com obras de grande qualidade e risco, onde era evidente um estilo muito pessoal rigoroso, envolvente, jogando com subtis movimentos de câmara e uma admirável direcção de actores: “Fallen Angel” (1945), “Forever Amber” (1947), “Daisy Kenyon” (1947), “Whirlpool” (1949), “Angel Face” (1953), “The Moon Is Blue” (1953), que a Legião de Decência tentou boicotar, “Carmen Jones” (1954), uma versão negra da Carmen, “River of No Return” (1954), um western muito particular com Marilyn Monroe, “The Court-Martial of Billy Mitchell” (1955), um drama de tribunal, “The Man with the Golden Arm” (1956), onde se abordava um tema tabu, a droga, “Saint Joan” (1957), “Bonjour Tristesse” (1958), segundo o best seller de Françoise Sagan, “Porgy and Bess” (1959), “Anatomy of a Murder” (1959), outro drama de tribunal com base num caso de violação, outro tema tabu segundo o código Hays, que Preminger foi dinamitando ao longo da carreira, “Exodus” (1960), sobre a fundação do estado de Israel, “Advise and Consent” (1962), uma análise dos corredores da política americana, tocando noutro tema proibido, a homossexualidade, “The Cardinal” (1963), sobre o Vaticano, “In Harm's Way” (1965), “Bunny Lake Is Missing” (1965), outro thriller poderoso ambientado em Inglaterra, “Hurry Sundown” (1967), onde o racismo era tema forte, ou “Such Good Friends” (1971), uma demolidora comédia em ambiente hospital, entre outros.

Filmografia
Como realizador
1931: Die Grosse Liebe
1936: Under Your Spell
1937: Danger: Love at Work
1943: Margin for Error
1944: In the Meantime, Darling (Esposas Errantes)
1944: Laura (Laura)
1945: Royal Scandal (Os Amores de Catarina da Rússia)
1945: Fallen Angel (Anjo ou Demónio)
1946: Centennial Summer (Noites de Verão)
1947: Forever Amber (Amber Eterna)
1947: Daisy Kenyon (Entre o Amor e o Pecado)
1948: That Lady in Ermine (A Dama de Arminho)
1949: The Fan (O Leque de Lady Windermere)
1949: Whirlpool (Turbilhão)
1950: Where the Sidewalk Ends (O Castigo da Justiça)
1950: The Thirteenth Letter (A Décima Terceira Carta)
1952: Angel Face (Bonita e Audaciosa)
1953: The Moon is Blue (Ingénua... Até Certo Ponto)
1953: Die Jungfrau auf dem Dach
1954: River of no Return (Rio Sem Regresso)
1954: Carmen Jones (Carmen Jones)
1955: The Court Martial of Billy Mitchell (Conselho de Guerra)
1955: The Man with the Golden Arm (O Homem do Braço de Ouro)
1957: Saint Joan (Santa Joana)
1957: Bonjour Tristesse (Bom Dia, Tristeza)
1958: Porgy and Bess (Porgy e Bess)
1959: Anatomy of a Murder (Anatomia de um Crime)
1960: Exodus (Exodus)
1962: Advise and Consent (Tempestade sobre Washington)
1963: The Cardinal (O Cardeal)
1964: In Harm's Way (A Primeira Vitória)
1965: Bunny Lake is Missing (Desapareceu Bunny Lake)
1967: Hurry Sundown (O Incerto Amanhã)
1968: Skidoo
1970: Tell me that you Love me, Junie Moon (Diz-me que me Amas, Junie Moon)
1971: Such Good Friends (Amantes Desconhecidos)
1975: Rosebud (O Caso Rosebud)
1979: The Human Factor (O Factor Humano)

GENE TIERNEY 
(1920 – 1991)
Gene Eliza Tierney nasceu a 19 de Novembro de 1920, em Brooklyn, Nova Iorque, EUA, e morreu a 6 de Novembro de 1991, em Houston, Texas, EUA, de enfisema pulmonar, com 70 anos de idade. Darryl F. Zanuck, um dos fundadores da 20th Century Fox, considerava-a a mulher mais bonita do cinema mundial. Não se sabe se seria a mais, mas uma das mais belas foi-o de certeza. Nascida numa família abastada, estudou nas melhores escolas da Suíça e da América, antes de se estrear no teatro, em 1938, e, no cinema, em 1940, em “The Return of Frank James”, de Fritz Lang. Casada com o estilista francês Oleg Cassini (1941 - 1952), de quem teve duas filhas, e W. Howard Lee (1960 - 1981). Conhecem-se casos com John F. Kennedy e Tyrone Power. Teve uma carreira não muito preenchida, em virtude de doenças várias, crises de depressão, sobretudo na década de 50 (em 1957 chegou mesmo a ser hospitalizada), mas deixou obras onde se pode admirar o seu invulgar talento e beleza sofisticada, a elegância e a discreta mas intensa sensualidade, como “Tobacco Road” (1941), de John Ford, “Sundown” (1941), de Henry Hathaway, “The Shanghai Gesture” (1941), de Josef von Sternberg, “Heaven Can Wait” (1943), de Ernst Lubitsch, “Laura” (1944), de Otto Preminger, “Leave Her to Heaven” (1945), de John M. Stahl, “The Razor's Edge” (1946), “The Ghost and Mrs. Muir” (1947), de Joseph L. Mankiewicz, “Whirlpool” (1949), de Otto Preminger, “Night and the City” (1950), de Jules Dassin, “On the Riviera” (1951), de Walter Lang, “Plymouth Adventure” (1952), “Never Let Me Go” (1953), “The Left Hand of God” (1955), de Edward Dmytryk, “Advise & Consent” (1962), ou “Toys in the Attic” (1963), de George Roy Hill. Foi nomeada para melhor actriz pela sua participação em “Leave Her to Heaven” (1945), de John M. Stahl, em 1945. No Passeio da Fama, a sua estrela situa-se em 6125 Hollywood Blvd.

Filmografía:
1940: The Return of Frank James (O Regresso de Frank James), de Fritz Lang
1940: Hudson's Bay (A Baía de Hudson), de Irving Pichel
1941: Tobacco Road (A Estrada do Tabaco), de John Ford
1941: Belle Starr (A Lenda da Raposa Vermelha), de Irving Cummings        
1941: Sundown (Eram Cinco Heróis), de Henry Hathaway
1941: The Shanghai Gesture (Aconteceu em Xangai), de Josef von Sternberg         
1942: Son of Fury: The Story of Benjamin Blake (O Aventureiro dos Mares do Sul), de John Cromwell
1942: Rings on Her Fingers (Dedos sem Anéis), de Rouben Mamoulian       
1942: Thunder Birds (Aves de Fogo), de William A. Wellman
1942: China Girl (Uma Aventura na China), de Henry Hathaway     
1943: Heaven Can Wait (O Céu Pode Esperar), de Ernst Lubitsch
1944: Laura (Laura), de Otto Preminger    
1945: A Bell for Adano (O Sino da Liberdade), de Henry King
1945: Leave Her to Heaven (Amar Foi a Minha Perdição), de John M. Stahl
1946: Dragonwyck (O Castelo de Dragonwyck), de Joseph L. Mankiewicz
1946: The Razor's Edge (O Fio da Navalha), de Edmund Goulding
1947: The Ghost and Mrs. Muir (O Fantasma Apaixonado), de Joseph L. Mankiewicz
1948: The Iron Curtain (A Cortina de Ferro), de William A. Wellman         
1948: That Wonderful Urge (Escândalo na Primeira Página), de Robert B. Sinclair   
1949: Whirlpool (Turbilhão), de Otto Preminger  
1950: Night and the City (Foragidos da Noite), de Jules Dassin
1950: Where the Sidewalk Ends (O Castigo da Justiça), de Otto Preminger
1951: The Mating Season (Cocktail de Sogras), de Mitchell Leisen
1951: On the Riviera (Escândalo na Riviera), de Walter Lang
1951: The Secret of Convict Lake (O Segredo do Evadido), de Michael Gordon
1951: Close to My Heart (Lágrimas de Mulher)), de William Keighley
1952: Way of a Gaucho (O Gaúcho), de Jacques Tourneur
1952: Plymouth Adventure (O Veleiro da Aventura), de Clarence Brown
1953: Never Let Me Go (Nunca me Abandones), de Delmer Daves  
1953: Personal Affair (Questão Pessoal), de Anthony Pelissier
1954: 'Black Widow (A Viúva Negra), de Nunnally Johnson            
1954: The Egyptian (O Egípcio), de Michael Curtiz           
1955: The Left Hand of God (A Mão Esquerda de Deus), de Edward Dmytryk          
1962: Advise and Consent (Tempestade sobre Washington), de Otto Preminger
1963: Toys in the Attic (O Segredo), de George Roy Hill
1963: Las cuatro noches de la luna llena / Four Nights of the Full Moon, de Sobey Martin
1964: The Pleasure Seekers (Três Raparigas em Madrid), de Jean Negulesco

Televisão
1947: Sir Charles Mendl Show    
1953: Toast of the Town            
1954: The 26th Annual Academy Awards
1957: What's My Line?   
1960: General Electric Theater / "Journey to a Wedding" (mini série)
1969: The F.B.I / "Conspiracy of Silence" (mini série)
1969: Daughter of the Mind (telefilme)   
1974: The Merv Griffin Show
1979: The Merv Griffin Show
1980: The Tonight Show
1980: The Mike Douglas Show    
1980: Dinah!
1980: Scruples (mini série)

1999: Biography: "Gene Tierney: A Shattered Portrait"