domingo, 2 de fevereiro de 2014

SESSÃO 20: 24 DE FEVEREIRO DE 2014


DO CÉU CAIU UMA ESTRELA (1946)

Um filme que põe em imagem anjos da guarda que descem à terra para ganharem asas, depois de salvarem um infeliz caído em desgraça, não parece predestinado a gozar dos favores do público quase 70 anos depois de ter sido estreado. No entanto, “It's a Wonderful Life”, de Frank Capra, aí está para demonstrar o contrário, sabido que é ser este um dos filmes mais populares de sempre e uma presença constante nas semanas natalícias, em vários cantos do mundo. Tal como o “Conto de Natal”, de Dickens, nas suas mais variadas versões, esta é uma obra abençoada pelos deuses e particularmente pelo talento dos seus criadores. Na verdade, este “Do Céu Caiu uma Estrela” mantém alguma afinidade com Scrooge, ainda que possa ser olhado como o seu reverso. Existe um Scrooge igualmente, mas não é sobre ele que incidem principalmente os holofotes do filme, mas, muito pelo contrário, sobre uma sua aparente vítima, George Bailey (James Stewart), habitando ambos na pequena cidade de Bedford Falls, nos EUA, durante o difícil período que mediou entre 1929 e o fim da II Guerra Mundial.
George Bailey, sabe-se logo na introdução do filme, atravessa um momento dramático da sua existência. De tal forma que se ouvem no ar as preces de alguns familiares e amigos, implorando por ele. Estas não eram “vozes de burro”, pois que chegaram ao céu, e obrigaram Deus a chamar S. José e encarregar este de enviar à Terra um anjo de segunda classe (os que ainda não têm asas) para auxiliar o desditoso George quando se encontra tentado a lançar-se da ponte e afogar-se nas águas do rio que passa na sua cidadezinha natal. Mas, antes de descer à Terra, Clarence (Henry Travers), o anjo, tem de saber quem é a personagem que vem ajudar, pelo que lhe passam pela frente algumas etapas importantes da vida deste, desde os seus oito-nove anos, quando salva um irmão mais novo de morrer afogado numa cratera aberta no gelo, ficando por isso surdo do ouvido esquerdo. Acompanha-se o jovem empregado numa loja, onde duas miúdas da sua idade o tentam seduzir, Mary Hatch e Violet Bick (em adultas, Donna Reed e Gloria Grahame), confessando-lhe Mary o seu eterno amor, junto ao ouvido mouco (numa das mais belas cenas desta obra memorável). George demonstra já nessa altura um comportamento de uma grandeza ética indiscutível, sendo injustamente acusado pelo dono da loja, e compreendendo essa atitude pelo facto do velho homem ter recebido a notícia da morte do filho nesse dia, mas não hesitado em confrontá-lo com um erro grave que poderia ter cometido, não fora a sua atenção particular na hora de enviar a uma doente um remédio que afinal era veneno. O mesmo comportamento que se mantém quando visita o pai, no seu escritório da “Bailey Brothers Buildings and Loan”, uma cooperativa de habitação e empréstimos, que se encontra nesse momento assediada e ameaçada pelo implacável Mr. Potter (Lionel Barrymore), que pretende acabar com essa empresa para assim se tornar o senhor absoluto da cidade. George defende o pai, e agiganta-se contra Potter. Essa será a sua divisa: estar do lado dos mais fracos contra a tirania dos ricos e poderosos.

Dez anos depois, vamos encontrar George, dias antes do Crash de 1929, a preparar-se para as viagens com que sempre sonhou, partindo para longe daquela pequena cidade de província onde se sente abafar, apesar da sedutora presença de Mary Hatch, com quem visita as ruínas de uma velha casa a cujas janelas lançam pedras com os seus desejos mais íntimos: George viajar, Mary casar com o viajante que, afinal, não partira nesse dia, pois o pai tem um ataque de coração, morre, e ele é obrigado a ocupar o seu lugar na empresa. Acaba, portanto, por ficar, casar, e quando se apresta para partir, agora numa muito aguardada viagem de núpcias, explode a crise financeira, dá-se a corrida aos bancos e George empresta as suas economias para debelar o perigo e impedir a falência da sua empresa. Afinal Bedford Falls, essa pequena e insignificante cidade de província, pode ser muito estimulante. George nunca chega realmente a partir para fora de Bedford Falls, mas não deixa de participar nas mais excitantes e dramáticas “viagens” interiores.
No inverno de 1945, quando tudo parece harmonizado, eis que o simpático Tio Billy (Thomas Mitchell) perde oito mil dólares no caminho para o banco, e a crise regressa, agora com ameaçadoras nuvens de falência e descrédito no horizonte. George parece ter perdido a força interior para continuar a sua luta, e olha as revoltas e negras águas do rio, quando surge Clarence atrás de si e se precipita da ponte abaixo. George acabará por saltar, não para se suicidar, mas para salvar a vida do anjo da guarda.

Altura para Clarence lhe mostrar que a sua vida fora até aí algo de muito importante, e exemplificar o que seria Bedford Falls (já chamada Potterland), sem a sua presença. Nada melhor do que ver para crer.
A guerra tinha acabado há pouco. Frank Capra regressara de um longo trabalho para o governo dos EUA, com as forças armadas americanas, coordenando uma série documental que ficaria célebre, “Why we Fight”, onde trabalhara com Anatole Litvak, John Ford, William Wyler, Joris Ivens, Anthony Veiller, Julius J. Epstein, Philip G. Epstein, etc. Durante a década de 30, Capra fora um dos arautos do “New Deal” e um defensor acérrimo da política de Roosevelt, criando um conjunto de obras que se apegavam a valores de solidariedade, de justiça social, de voluntarismo popular, como "It Happened One Night," "Mr. Deeds Goes to Town," "Mr. Smith Goes to Washington” ou "You Can't Take It With You". Com “It's a Wonderful Life” mantém muitos desses valores, pugnando pela defesa dos mais fracos, pela luta contra a ganância dos ricos e a cegueira dos poderosos, mas celebrando, sobretudo, a solidariedade e a luta comum pela justiça e pela igualdade de tratamento e de oportunidades, quer se seja rico ou pobre. Uma luta pela dignidade humana, em suma, a que “Do Céu Caiu uma Estrela” dá uma continuidade brilhante, partindo de uma história de Philip Van Doren Stern, adaptada ao cinema por Frances Goodrich, Albert Hackett, Jo Swerling, Michael Wilson (este não creditado no genérico) e do próprio Frank Capra. A narrativa de Capra é notavelmente conduzida, com segurança e eficácia extrema, um fabuloso sentido do espectáculo popular, sem nunca descurar a delicadeza e a sobriedade na análise e exposição das emoções, sem demagogia fácil ou sentimentalismo bacoco, terreno para onde era tão fácil derrapar com uma tal história como ponto de partida. Mas Capra sustenta a emoção sempre a um nível alto, nobre, sem rodriguinhos, mesclando drama e comédia, sorriso e lágrima, com o drama da condição humana como pano de fundo e os valores do humanismo a justificarem um olhar de estima. As cenas inesquecíveis sucedem-se, pautadas por uma interpretação globalmente brilhante, mas absolutamente inqualificável de James Stewart, que aqui atinge um dos pontos mais altos da sua invulgar carreira, que o leva a ser considerado por muitos o melhor actor de cinema de sempre. Também Donna Reed tem aqui um dos seus papéis de eleição, ela que nunca terá sido uma vedeta, pelo ar recatado da sua figura, mas que em “It's a Wonderful Life” é parte integrante do sucesso desta obra-prima imortal. De boas vontades está o inferno cheio, costuma dizer-se e poderá ser verdade. Infelizmente o mundo cá de baixo anda muito carenciado delas e um filme como este faz-nos acreditar que alguma coisa ainda é possível, se existirem homens e mulheres capazes de acreditarem num gesto de solidária amizade e de um amor que não exija paga.  
Nomeado para cinco Oscars (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor, James Stewart, Melhor Montagem, William Hornbeck e Melhor Som, John Aalberg) acabaria por voltar de mãos vazias, num ano em que “Os Melhores Anos das Nossas Vidas” ganharia os principais Oscars, em disputa com “Henrique V”, “O Fio da Navalha” e “O Despertar”, além de “Do Céu Caiu Uma Estrela”.

DO CÉU CAIU UMA ESTRELA
Título original: It's a Wonderful Life
Realização: Frank Capra (EUA, 1946); Argumento: Frances Goodrich, Albert Hackett, Frank Capra, Jo Swerling, (Michael Wilson), segundo história de Philip Van Doren Stern; Produção: Frank Capra; Música: Dimitri Tiomkin; Fotografia (p/b): Joseph F. Biroc, Joseph Walker, Victor Milner; Montagem: William Hornbeck; Direcção artística: Jack Okey; Decoração: Emile Kuri; Guarda-roupa: Edward Stevenson; Maquilhagem: Gordon Bau; Assistentes de realização: Arthur S. Black Jr.; Som: Clem Portman, Richard Van Hessen, John Aalberg; Efeitos especiais: Russell A. Cully, Daniel Hays, Russell Shearman; Companhias de produção: Liberty Films; Intérpretes: James Stewart (George Bailey), Donna Reed (Mary Hatch), Lionel Barrymore (Henry F. Potter), Thomas Mitchell (Tio Billy Bailey), Henry Travers (Clarence), Beulah Bondi (Ma Bailey), Frank Faylen (Ernie Bishop), Ward Bond  (Bert), Gloria Grahame (Violet Bick), H.B. Warner, Frank Albertson, Todd Karns, Samuel S. Hinds, Mary Treen, Virginia Patton, Charles Williams, Sarah Edwards, William Edmunds, Lillian Randolph, Argentina Brunetti, Robert J. Anderson, Ronnie Ralph, Jean Gale, Jeanine Ann Roose, Danny Mummert, Georgie Nokes, Sheldon Leonard, Frank Hagney, Ray Walker, etc. Duração: 130 minutos; Distribuição em Portugal: Trisan editores (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos. Estreia em Portugal: 30 de Novembro de 1947.

Nota referente a Frank Capra aparecida na folha relativa a “Peço a Palavra”
Nota referente a James Stewart aparecida na folha relativa a “Peço a Palavra”

DONNA REED (1921-1986)
Donna Belle Mullenger nasceu a 27 de Janeiro de 1921, em Denison, Iowa, EUA, e viria a falecer a 14 de Janeiro de 1986, em Beverly Hills, Los Angeles, Califórnia, EUA, de cancro no pâncreas. Cresceu como uma vulgar rapariga de campo, mas com uma beleza que rapidamente chamou a atenção, o que a levou até Los Angeles, à espera de uma oportunidade, dada pela MGM, que a contratou, aparecendo em “A Primavera da Vida” (1941), interpretado por Mickey Rooney e Judy Garland. Com “O Retrato de Dorian Gray” (1945), adquire notoriedade e, no ano seguinte, interpreta o seu melhor papel, em “Do Céu Caiu Uma Estrela”, ao lado de James Stewart. Continua uma carreira de sucesso em “Código de Honra” (1948), com Alan Ladd, com quem volta a trabalhar em “No Reino do Terror” (1949). Em 1953, consegue o Oscar de Melhor Actriz secundária, em “Até à Eternidade” (1953). “Horizontes Desconhecidos” (1955) e “The Whole Truth” (1958) são os seus títulos mais interessantes, antes de aparecer na TV em séries que lhe trouxeram nomeações para Emmys e grande popularidade, nomeadamente em “Dallas” (1984-85).
Casada com William Tuttle (1943 - 1945), Tony Owen (1945 - 1971) e Grover Asmus (1974 - 1986). Considerada uma conservadora, foi todavia uma activista anti-nuclear e anti-guerra do Vietname. Fundadora do grupo “Another Mother for Peace”.

Filmografia:
1941: The Get-Away, de Edward Buzzell e Richard Rosson         
1941: Shadow of the Thin Man (A Sombra do Homem Sombra), de W.S. van Dyke
1941: Babes on Broadway (Primavera da Vida), de Busby Berkeley
1942: Personalities (curta-metragem)
1942: The Bugle Sounds (Ao Toque de Clarim), de S. Sylvan Simon e Richard Thorpe
1942: The Courtship of Andy Hardy (O Idílio de Andy Hardy), de George B. Seitz
1942: Mokey, de Wells Root
1942: Calling Dr. Gillespie, de Harold S. Bucquet
1942: Apache Trail, de Richard Thorpe   e Richard Rosson          
1942: Eyes in the Night (Olhos na Escuridão), de Fred Zinnemann
1943: The Human Comedy (A Comédia Humana), de Clarence Brown
1943: Dr. Gillespie's Criminal Case, de Willis Goldbeck
1943: The Man from Down Under, de Robert Z. Leonard
1943: Thousands Cherr (A Festa dos Ídolos), de George Sidney
1944: See Here, Private Hargrove, de Wesley Ruggles
1944: Gentle Annie, de Andrew Marton
1945: The Picture of Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray), de Albert Lewin
1945: They Were Expendable (Homens para Queimar), de John Ford e Robert Montgomery
1946: Faithful in My Fashion, de Sidney Salkow
1946: It's a Wonderful Life (Do Céu Caiu Uma Estrela), de Frank Capra
1947: Green Dolphin Street (A Rua do Delfim Verde), de Victor Saville.
1948: Beyond Glory (Código de Honra), de John Farrow
1949: Chicago Deadline (No Reino do Terror), de Lewis Allen
1950: Screen Actors (curta-metragem)
1951: Saturday's Hero, de David Miller
1952: Scandal Sheet (Reportagem de Escândalo), de Phil Karlson
1952: Hangman's Knot (O Laço do Carrasco), de Roy Huggins
1953: USSR Today (documentário)
1953: Screen Snapshots: Hollywood Laugh Parade (curta-metragem)
1953: Trouble Along the Way (Barreiras Vencidas), de Michael Curtiz
1953: Raiders of the Seven Seas (O Corsário dos Sete Mares), de Sidney Salkow
1953: From Here to Eternity (Até à Eternidade), de Fred Zinnemann
1953: The Caddy (O Grande Jogador), de Norman Taurog
1953: Gun Fury (A Fúria das Armas), de Raoul Walsh
1954: They Rode West, de Phil Karlson
1954: Three Hours to Kill (Três Horas para Matar), de Alfred L. Werker
1954: The Last Time I Saw Paris (A Última Vez que Vi Paris), de Richard Brooks
1954: The Ford Television Theatre (série de TV)
1955: The Far Horizons (Horizontes Desconhecidos), de Rudolph Maté
1955: The Benny Goodman Story (A História de Benny Goodman), de Valentine Davies
1955: Tales of Hans Anderson (série de TV)
1956: Ransom! (O Resgate), de Alex Segal
1956: Backlash, de John Sturges
1956: Beyond Mombasa (Ao Sul de Mombaça), de George Marshall
1957: General Electric Theater (série de TV)
1957: Suspicion (série de TV)
1958: The Whole Truth, de John Guillermin e Dan Cohen
1958-1966: The Donna Reed Show (série de TV)
1960: Pepe (Pepe), de George Sidney (caméo)
1974: Yellow-Headed Summer, de ?
1979: The Best Place to Be, de David Miller (telefilme)
1983: Deadly Lessons, de William Wiard (telefilme)
1984: The Love Boat (O Barco do Amor) (série de TV)

1984-1985: Dallas (Dallas) (série de TV) 

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