"VERTIGO” O
MELHOR FILME DE SEMPRE?
“Sight & Sound” é uma revista
inglesa de critica cinematográfica que apareceu em 1932, passando a partir de
1934 a ser editada pelo BFI (British Film Institute). A revista mantem-se ainda hoje como uma das
publicações mais prestigiadas em todo o mundo.
De edição mensal, dá igual importância a obras de grade público e de
circuitos restritos, sendo dirigida por Gavin Lambert entre 1949 e 1955,
depois, de 1956 a 1990, por Penelope Houston. Actualmente é da responsabilidade
de Nick James.
Em 1952, a “Sight & Sound” organizou
um primeiro inquérito entre críticos, realizadores, historiadores, académicos e
distribuidores de todo o mundo, solicitando a cada um dele a sua lista dos 10
Melhores Filmes de Sempre. Do computo geral saiu uma lista que tinha à frente
“Ladrões de Bicicletas”, de Vittorio de Sica, e uma maioria de obras do cinema
mudo: 1. Bicycle Thieves (25 votos), 2. City Lights (19), 2. The Gold Rush
(19), 4. Battleship Potemkin (16), 5. Intolerance (12), 5. Louisiana Story
(12), 7. Greed (11), 7. Le Jour se Leve (11), 7. The Passion of Joan of Arc
(11), 10. Brief Encounter (10), 10. La Règle du Jeu (10) e 10. Le Million (10).
Dez anos depois, a revista repetiu o
inquérito com resultados bastante diferente. “Citizen Kane”, de Orson Welles,
aparecia à frente: 1. Citizen Kane (22 votos), 2. L'Avventura (20), 3. La Règle
du Jeu (19), 4. Greed (17), 4. Ugetsu Monogatari (17), 6. Battleship Potemkin
(16), 7. Bicycle Thieves (16), 7. Ivan the Terrible (16), 9. La Terra Trema
(14) e 10. L'Atalante (13).
Em 1972, novo inquérito dava outro
resultado, mantendo todavia “Citizen Kane” na dianteira:
1. Citizen Kane (32 votos), 2. La
Règle du Jeu (28), 3. Battleship Potemkin (16), 4. 8½ (15), 5. L'Avventura
(12), 5. Persona (12), 7. The Passion of Joan of Arc (11), 8. The General (10),
8. The Magnificent Ambersons (10), 10. Ugetsu Monogatari (9) e 10. Wild
Strawberries (9).
Nova década passou e, em 1982, a
votação sofreu algumas alterações, mas Welles manteve-se na dianteira: 1.
Citizen Kane (45 votos), 2. La Règle du Jeu (31), 3. Seven Samurai (15), 3.
Singin' in the Rain (15), 5. 8½ (14), 6. Battleship Potemkin (13), 7.
L'Avventura (12), 7. The Magnificent Ambersons (12), 7. Vertigo (12), 10. The
General (11) e 10. The Searchers (11). Não deixa de ser interessante verificar
as alterações. Alguns títulos foram desaparecendo, outros surgindo, alguns
subindo ou descendo em virtude do “gosto” da época.
Em 1992, a iniciativa manteve-se e o
primeiro lugar também: 1. Citizen Kane (43 votos), 2. La Règle du Jeu (32), 3.
Tokyo Story (22), 4. Vertigo (18), 5. The Searchers (17), 6. L'Atalante (15),
6. The Passion of Joan of Arc (15), 6. Pather Panchali (15), 6. Battleship
Potemkin (15) e 10. 2001: A Space Odyssey (14).
No primeiro inquérito do século XXI
(2002), “Vertigo” começa a ameaçar “Citizen Kane” que todaia mantem a hegemonia
durante 50 anos: 1. Citizen Kane (46 votos), 2. Vertigo (41), 3. La Règle du
Jeu (30),4. The Godfather e The Godfather Part II (23), 5. Tokyo Story (22), 6.
2001: A Space Odyssey (21), 7. Battleship Potemkin (19), 7. Sunrise: A Song of
Two Humans (19), 9. 8½ (18) e 10. Singin' in the Rain (17).
Em 2012, finalmente, a reviravolta:
“Vertigo” em primeiro lugar, “O Mundo a Seus Pés” em segundo. Entretanto o
universo de votantes também se alterou consideravelmente em numero: 846 críticos,
programadores, académicos e distribuidores, notando a ausência de realizadores
que agora tinham uma votação à parte. Os resultados: Vertigo (191 votos), 2.
Citizen Kane (157), 3. Tokyo Story (107), 4. La Règle du Jeu (100), 5. Sunrise:
A Song of Two Humans (93), 6. 2001: A Space Odyssey (90), 7. The Searchers (78),
8. Man with a Movie Camera (68), 9. The Passion of Joan of Arc (65) e 10. 8½
(64).
A “Sight & Sound” desde 92 que
mantem um votação isolada para realizadores, com resultados bastante diferentes
nalguns aspectos. Em 1992: 1. Citizen Kane, 2. 8½, 3. Raging Bull, 4. La Strada,
5. L'Atalante, 6. The Godfather, 6. Modern Times, 6. Vertigo, 9. The Godfather
Part II, 10. The Passion of Joan of Arc, 10. Rashomon e 10. Seven Samurai;
Em 2002: 1. Citizen Kane; 2. The
Godfather e The Godfather Part II, 3. 8½, 4. Lawrence of Arabia, 5. Dr.
Strangelove, 6. Bicycle Thieves, 6. Raging Bull, 6. Vertigo, 9. Rashomon, 9. La
Règle du Jeu, 9. Seven Samurai; Finalmente em 2012 os resultados também
diferiram da lista mais vasta: 1. Tokyo Story (48 votos), 2. 2001: A Space
Odyssey (42), 3. Citizen Kane (42), 4. 8½ (40), 5. Taxi Driver (34), 6.
Apocalypse Now (33), 7. The Godfather (31), 07. Vertigo (31),
9. The Mirror (30) e 10. Bicycle
Thieves (29).
Até agora esteve a falar-se sobretudo
de filmes de ficção (com uma ou outra excepção documental). Em 2014 a “Sight
& Sound” realizou um inquérito sobre os Melhores Documentários de Sempre.
Por curiosidade aqui ficam os resultados: 1. Man with a Movie Camera (100 votos),
2. Shoah (68), 3. Sans Soleil (62), 4. Night and Fog (56), 5. The Thin Blue
Line (49), 6. Chronicle of a Summer (32), 7. Nanook of the North (31), 8. The
Gleaners and I (27), 9. Dont Look Back (25) e 9. Grey Gardens (25).
Voltando a “Vertigo” e ao seu primeiro
lugar em 2012, há que referir que a sua foi uma subida gradual, durante os
últimos decénios, desde o sétimo lugar em 1998, passando por um quarto (2000),
por um segundo (2002) para alcançar o topo da pirâmide em 2012. Esta
progressiva subida quer dizer alguma coisa de consistente: o filme foi cada vez
mais apreciado sem dúvida. Mas, por outro lado, estes inquéritos comportam uma
percentagem de incerteza muito grande quanto aos resultados. Primeiro que tudo
há que avaliar o universo de convidados a votar. Se forem todos escolhidos em
função de uma certa tendência estética ou geográfica, os resultados não podem
ser consistentes. E sabe-se muito bem como se podem influenciar as conclusões,
escolhendo sabiamente as premissas. Depois, as listas não são analisadas em
função das preferências no interior de cada votante. Muito pelo contrario: cada
filme é um voto e é da soma dos votos que sai o resultado final. Mas, qualquer
que sejam as dúvidas, são interessantes e esclarecedores os desfechos. Se será
ou não o Melhor Filme de Sempre (ao cair do ano de 2012), não importa muito. É
seguramente um dos Melhores Filmes de Sempre, o que já importa bastante. Para
mim, já agora como nota pessoal, nunca o colocaria sequer entre os meus Dez
Melhores. O que não invalida que o considere uma obra-prima inquestionável.
A MULHER QUE VIVEU DUAS VEZES
Consta que Alfred Hitchcock gostaria
muito de adaptar ao cinema “Celle qui n'Était Plus”, um romance da dupla
francesa, Pierre Boileau e Thomas Narcejac, entretanto adaptado em França, em
1955, por Henri-Georges Clouzot, com o título “Les Diaboliques”. Sabendo do
interesse do realizador norte-americano, Boileau e Narcejac resolveram escrever
um novo romance, "D'Entre les Morts", que enviaram a Hitch. Assim
nasce “Vertigo, que conta com o trabalho de Alec Coppel e Samuel A. Taylor na
escrita do guião, com a colaboração, não referenciada no genérico do escritor e
dramaturgo Maxwell Anderson.
Extremamente original quando foi
rodado, na forma como desenvole a narrativa e nos processos técnicos utilizados
(muitas vezes repetidos e copiados posteriormente, o que pode dar a sensação
hoje em dia de não ser tão original quanto o foi em 1957), “A Mulher que Viveu
Duas Vezes” é uma obra extremamente complexa, jogando com alguns dos temas
caros a Hitchock. Um deles é a obsessão da culpa, outro a presença de uma loura
capitosa, que oscila entre vítima indefesa e mulher fatal, um terceiro o
recurso à psicanalise e aos complexos e pulsões eróticas desencadeados pelas
teorias de Freud e continuadores, muito em voga por esses anos no cinema
norte-americano.
John Ferguson (o sempre notável James
Stewart) é um polícia reformado, que sente a culpa de estar ligado à morte de
um companheiro de equipa que, ao longo de uma perseguição pelos telhados de São
Francisco, ao tentar salvá-lo de uma queda, acaba por sucumbir ele próprio no
precipício. Ferguson
não sente só a culpa desse acidente, como também fica refém de uma acrofobia
que o impede de se aproximar de qualquer abismo, sofrendo de terríveis
vertigens que lhe tolhem os movimentos e provocam o desmaio e a queda. Vive a
tentar recuperar do trauma, na companhia de Midge Wood (a admirável Barbara Bel
Geddes), uma designer que se apresenta como a imagem protectora e maternal de
uma amiga e serena apaixonada que lhe dá a força necessária em momentos de
maior inquietação. Um dia Ferguson recebe a proposta de um antigo amigo,
Gavin
Elster (Tom Helmore), para reatar a sua actividade, agora como detective
particular. A ideia é perseguir Madeleine Elster (a belíssima Kim Novak),
mulher de Gavin, que atravessa um período conturbado, julgando assumir a
personalidade de uma antiga antepassada que se matara. Gavin afirma temer pela
sorte da mulher e quere-a acompanhada ao longo do dia, antecipando alguma
tragédia. Fergunson acaba por aceitar a incumbência e a beleza de Madeleine e o
mistério que a cerca acabarão por enfeitiçar o ex-polícia. É difícil ir mais
além a desenhar os contornos da trama sem lhe retirar suspense, o que num filme
do mestre do mesmo, seria indesculpável.
Mas pode dizer-se que Fergunson não se
liberta da sua acrofobia, e que alguém se aproveita dela para tentar cometer o
crime prefeito. Pode ainda falar-se de uma obsessão amorosa que fulgurantemente
galopa, e não se andará muito longe da verdade se se analisar, a certa altura
do enredo, o comportamento de Fergunson que se aproxima muito de um sintomático
pigmaleanismo, procurando recriar a mulher dos seus sonhos. Aliás a revisitação
de alguns temas mitológicos clássicos e de alguns sonhos freudianos(há mesmo um
pesadelo visual de Fergunson que revela alguma influência surrealista, sob a
batuta de mestre Saul Bass) ao longo de toda a obra que conta ainda com uma
curiosa construção cromática, com alguns planos a viragem para um
monocromatismo muito interessante de um ponto de vista simbólico, mas
sobretudo como efeitos dramáticos conseguidos mercê com mão de mestre pela
astúcia formal de Hitch.
De um ponto de vista plástico a obra é de uma
elegância e de um beleza sufocantes, uma das mais rigorosas e perfeitas saídas
deste genial manipulador de emoções. Há um efeito que começou desde então a ser
conhecido como “a vertigem Hitchcock” e através do qual o cineasta consegue o
efeito de vertigem conjugando um travelling manual recuando, com um zoom óptico
de aproximação. Mas esta é apenas uma das originalidades desta
obra-prima que, todavia, na noite da atribuição dos Oscars desse ano, apenas se
viu distinguida com duas nomeações para Melhor Direcção Artística e Melhor Som,
e nem estas haveria de ganhar. Aliás, a recepção do público na época da estreia,
foi razoavelmente boa, bem como a da crítica, sem todavia entusiasmar quem quer
que seja. O título só começou a ser devidamente
valorizado a partir da década de 70, quando alguns realizadores (entre os quais
Martin Scorsese e Brian De Palma), muito influenciados pela critica europeia,
lhe atribuíram um outro valor. Mas foi definitivamente depois d restauro, em
1996, que a obra saltou para os lugares de topo das listas dos Melhores de
Sempre.
“A Mulher Que Viveu Duas Vezes” não é
curiosamente o filme preferido de Hitch (chegou a confessar que uma das suas
obras preferidas era “Shadow of a Doubt” - A Sombra de Uma Dúvida-, de 1943),
mas, igualmente segundo as suas próprias palavras terá sido “o seu filme mais
pessoal”, onde a protagonista pode considerar-se a representação das mulheres
na vida de Alfred Hitchcock.
A
MULHER QUE VIVEU DUAS VEZES
Título
original: Vertigo
Realização: Alfred
Hitchcock (EUA, 1958); Argumento: Alec Coppel, Samuel A. Taylor, segundo
romance de Pierre Boileau e Thomas
Narcejac ("D'Entre Les Morts"), como colaboração não creditado de
Maxwell Anderson; Produção: Herbert Coleman, Alfred Hitchcock; Música: Bernard
Herrmann; Fotografia (cor): Robert
Burks; Montagem: George Tomasini; Casting: Bert McKay; Direcção artística:
Henry Bumstead, Hal Pereira; Decoração:
Sam Comer, Frank R. McKelvy; Guarda-roupa: Edith Head; Maquilhagem: Nellie Manley, Wally
Westmore; Direcção de Produção: Frank Caffey, Andrew J. Durkus, C.O.
Erickson, Don Robb; Assistentes de realização:
Daniel McCauley; Departamento de arte: Saul Bass (poster e genérico), Gene
Lauritzen, Manlio Sarra (retrato de Carlota); Som: Winston H. Leverett, Harold
Lewis; Efeitos visuais: Farciot Edouart,
John P. Fulton, W. Wallace Kelley, Paul K. Lerpae, John Whitney Sr.; Companhias
de produção: Paramount Pictures, Alfred J. Hitchcock Productions; Intérpretes: James Stewart (John
'Scottie' Ferguson), Kim Novak (Madeleine Elster / Judy Barton), Barbara Bel
Geddes (Midge Wood), Tom Helmore (Gavin Elster), Henry Jones (Coroner), Raymond
Bailey (médico de Scottie), Ellen Corby
(gerente do McKittrick Hotel), Konstantin Shayne (Pop Leibel), Lee Patrick,
David Ahdar, Isabel Analla, Jack Ano, Margaret Bacon, John Benson, Danny
Borzage, Margaret Brayton, Paul Bryar, Steve Conte, Jean Corbett, Bruno Della
Santina, Roxann Delman, Molly Dodd, Bess Flowers, Joe Garcio, Joanne Genthon,
Don Giovanni, Roland Gotti, Victor Gotti, Fred Graham, Robert Haines, Buck
Harrington, Alfred Hitchcock (homem a passear na rua, aos 11 minutos do filme),
Jimmie Horan, Art Howard, Catherine Howard, June Jocelyn, David McElhatton, Miliza Milo, Lyle Moraine,
Forbes Murray, Julian Petruzzi, Ezelle Poule,
Kathy Reed, William Remick, Jack Richardson, Jeffrey Sayre, Nina
Shipman, Dori Simmons, Ed Stevlingson, Sara Taft, etc. Duração: 129 minutos;
Distribuição em Portugal: Midas Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data
de estreia em Portugal: 13 de Janeiro de 1959.
O meu filme favorito e o paradigma da teoria fílmica feminista
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